Carta para Selene.
O enterro.
Há
seis meses enterrei minha esposa. Hoje enterro minha filha, são quatro horas da
tarde no cemitério de Jacareí. Passei o dia ouvindo frases de elevação moral
“Ela esta do lado de Deus”, “Ela esta em algum lugar melhor”, “Deus sabe o que
faz”. Nem imaginam a discussão que tive com “ELE” na capela do
hospital.
Iris era o nome de minha filha. Eu, meu irmão e dois primos conduzíamos o caixão para
o setor antigo do cemitério, algo me tirou a atenção, uma menina, quinze
a dezesseis anos, vestida de preto e seu batom era roxo,
ela levantou delicadamente o rosto e lagrimas escorriam.
Chegamos
ao local, à gaveta estava já aberta e o padre que minha
mãe arranjou começou o seus dizeres, eu não me lembro de nenhuma
palavra dita, minha atenção estava em Iris. Um pequeno reflexo me distraiu, era
a menina de preto próxima ao tumulo dos barões.
Meia
hora depois minha filha já estava no tumulo de granito de minha família, o
pior foi os pêsames, as mesmas palavras sendo repetidas.
Dez
para cinco, sobraram apenas eu, meu irmão e minha mãe, nos despedimos de Iris, e tomamos o caminho da saída, o cemitério estava quase
fechando e neste momento meu irmão Jonas passou a mão no queixo e
disse.
-
Preciso comprar uma lamina de barbear!
Compreendi o motivo do
reflexo nos meus olhos!
A Santa Casa
Eu corri! Feito um
louco! Alguém gritou!
- Ela está morta!
Não é com Iris que
estava preocupado, cheguei à capela olhei rapidamente para o túmulo de minha
filha a minha direita e virei em direção contraria. Encontrei a do lado do
tumulo do Barão de Jacareí, estava sentada, encostada e desacordada, com os
pulsos cortados, muito sangue no chão. Peguei a no colo. Jonas e um funcionário
do cemitério chegaram ao local, e as palavras de espanto saíram quase
naturalmente.
- Meu Deus!
- O que aconteceu!
Olhei para Jonas e
disse.
- Pegue o carro! Deixei
mais próximo possível!
Ele Permaneceu parado,
era obvio que estava preocupado com os estofamentos do carro, então tive que
gritar com ele!
- O carro Jonas! Rápido!
Meu irmão correu por
entre os túmulos. A levei até depois da capela, com as mãos tentei estancar o
sangue, o carro popular de Jonas se aproximou de ré, a colocamos no banco de
traz, fiquei ao seu lado, segurando os pulsos e Jonas na direção disse.
- Tem um hospital atrás
do cemitério.
- Para Santa Casa! O
Dr. Elias está de plantão hoje!
Nada foi dito no percurso,
o sangue escorria entre meus dedos e ainda assim notei a beleza da pequena adolescente,
sua pele clara como leite, os finos detalhes de seu rosto, seus longos cabelos
negros.
O carro parou no setor
de emergência, o pessoal da Santa Casa foi ágil. Colocaram em uma maca com
rodas e a levaram.
Uma paciente que estava
próxima disse em tom de ironia.
- O namorado a largou!
Só pode ser isto!
Meu irmão se aproximou
dizendo.
- Você já fez sua
parte! Agora precisa de um bom
banho e repouso!
- Vou ficar!
- Não podemos fazer
mais nada! Está nas mãos dos médicos!
- Vou ficar Jonas! Não
é por ela! É por mim! Eu preciso entender.
- Então amanham passo
em sua casa para ver como você está.
- Sim! Adeus! Faça
isso!
- Até amanham Ezequiel
.
Ezequiel...!Este é meu
nome!
O medico é o coveiro.
Eu não sei quanto tempo
estou acordado, sentado em um banco ao meu lado a imagem de cristo, a frente um
relógio antigo. Já faz meia hora que cheguei neste hospital, e ainda não sei o
nome da menina de preto. Será que o coração dela ainda bate? Ela me faz lembrar Iris.
Um toque no meu ombro
me despertou dos meus devaneios. Era o Dr. Elias.
- Me desculpe! Eu não
pude comparecer!
- Não se precisa se
preocupar ou se desculpar. Não podíamos fazer nada por Iris.
Ele ficou quieto por
alguns instantes, percebi em seu olhar que sentia piedade por mim, não
conseguia transformar em palavras então ele mudou de assunto.
- Sim! A outra menina!
Fizemos uma transfusão, creio que vai melhorar. Ele respirou profundamente e
disse a frase final. – Não tá na hora de você ir para casa? A quanto tempo não
dorme?
- Vou ficar mais pouco!
Talvez apareça alguém da família!
- Você tem alguma
informação, algum telefone que podemos ligar.
- Não! No cemitério!
Ela tinha uma bolsa e um caderno, ficou no chão, próximo ao tumulo do Barão de
Jacareí.
- Pelas roupas e sapato
ela é classe medias, logo aparece alguém.
E o Dr. Elias se foi
para o seu oficio, se passaram alguns minutos e uma enfermeira alta e loira
apareceu no corredor, me falou friamente.
- Tem um senhor na
porta dizendo que trabalha no cemitério e quer lhe falar!
Fui à entrada da Santa
Casa e o encontrei, era pardo, em sua boca faltavam alguns dentes, encostado na
parede a bicicleta modelo barra forte, a Rua Antonio Afonso estava vazia e o
céu estrelado! Ele iniciou a conversa.
- Fio! Te Procurei ôce
por todu hospital. Aquí tá as cosas da minina, nos não mexemos in nada.
Ele me entregou a
bolsa, uma agenda e um envelope pardo.
- Obrigado não sei o
que dizer!
- Não precisa agradece!
Ôce fez o mais difícil. Sabi a minina ela aparecia no cemitério e ficava horas
esquevendo. Depoi do enterro du pai dela sabadu passadu a gente não viu mais
ela e hoje aparece e faze isso.
Será que este foi o
motivo, a morte do pai, permanecemos quietos por alguns momentos. sorriu um
sorriso triste e disse.
- Sabi! Já perdi também
um fio, dói! Dói muito! Mas passa e fica uma tristi lembança.
Seus olhos estavam
úmidos e vermelhos.
-Agora peciso i! vê
meus otros fios.
- Ezequiel! Meu nome é
Ezequiel!
- Moises! Disse com outro
sorriso no rosto.
Ele subiu na bicicleta
desceu a Rua Antonio Afonso em direção do bairro Campo Grande. Este Moises! O
melhor ser humano que conheci nos últimos meses!
A Carta
Volto ao banco que estava sentado, coloco a bolsa e o
envelope do meu lado. Estou louco para ler o conteúdo desta agenda, o que
pensava a menina de preto se há números de telefones para ligar.
Não posso fazer isso, não seria honesto com ela. Então
pego a bolsa e a agenda e levo as para a recepção da Santa Casa, volto para meu
banco, vejo o envelope, em um dos cantos está manchado de sangue, nele está
escrito.
Para alguém!!
Abro e começo a ler
O cemitério é tão calmo, discreto e vazio. Miguel e seus querubins de mármore
não vão me censurar. A navalha já esta desembalada e meu pulso exposto.
Queria ser forte e enfrentar a vida, aqueles que tenho amor, me
culparam, me traíram, me machucaram.
Oceano! Queria apenas brincar em suas águas, mas me faltou chão e aquele
que me amava, veio e me salvou e você o levou em meu lugar.
Acreditava na amizade e no amor, mas a porta se abriu e os vi deitados e nus.
Precisava de amparo, ajuda, a pessoa que poderia me dar, virou as costas e
me culpou.
Em uma das lapides está escrito:
De manhan a fresca rosa
He o esmalte do jardim
De tarde secca e morre
No mundo tudo é assim
À tarde nem chegou e desejo partir
Desculpa papai
Coloco a carta dentro do envelope e permaneço naquele
banco ao lado da imagem de cristo, pobre menina, imagino o que ela passou esta
semana!
A Mãe.
Meu corpo estava cansado, maldito banco de madeira. Li a
carta da menina de preto varias vezes. Por um momento adormeci e despertei com
um toque no meu ombro. Era uma senhora, devia ter uns trinta e cinco anos, cabelos
negros, olhos azuis. Com simplicidade perguntou.
- Ezequiel?
- Sim!
Levantei-me por educação, ela me abraçou, sua respiração
era uma mistura de tristeza e dor, no seu halito cheirava pasta de dente e whishi,
com dificuldade a coloquei no banco de madeira, da bolsa tirou um guardanapo de
papel e enxugou suas lagrimas e disse.
- Obrigada!
-Minha menina!
-Você a salvou!
-Selene! Minha menina!
Selene agora sei o nome dela, respondo de forma medíocre.
- Fiz apenas minha parte. Qual o seu nome?
- Ester!
Por alguns momentos o silêncio pairou. Ela me encarou
com seus olhos verdes lacrimejantes e disse.
- O pai dela morreu a uma semana e eu a culpei, joguei
na cara dela “Foi por sua causa”, “Que besteira você fez”, foram varias ofensas
“idiota” e “inútil”. Eu confesso fiquei com ódio e quis descontar na minha
menina.
Por alguns momentos o silencio voltou e tentei reconfortar
aquela pobre mulher.
- Sempre queremos descontar naqueles que amamos, eles
sempre estão próximos, nossa culpa e a culpa do acaso e do destino jogamos nas
costas deles. Sabe! Minha esposa morreu à seis meses em um acidente na Dutra. Minha
filha foi enterrada hoje. O câncer a levou. Errei! Errei muitas vezes, nunca
fui de pedir desculpas, meu orgulho não deixava! Não posso voltar! Você pode!
Algumas palavras foram
ditas! Nada que recordo. Ela notou a porta da capela aberta. E foi conversar
com Deus!
A amiga e o namorado.
Acreditava que não era mais necessária minha presença, meu
corpo estava cansado, queria ir embora, dormir. Peguei a carta e a li pela ultima
vez, deixei do meu lado em cima do envelope. Fechei os olhos e tentei relaxar
ao abrir a notei, andando no corredor, tinha a mesma idade de Selene, de uma
beleza surpreendente, cabelos castanhos e de pele parda, ela se aproximou e
perguntou.
- Estou procurando uma senhora! Ester! Disseram que
estava por aqui!
- Esta rezando na capela!
Ela olhou para a carta e reconheceu a letra.
- Posso ler?
-Sim!
Em poucos segundos leu a carta e desabafou.
- Como fui tola, perdi minha melhor amiga, pensava
gostar dele, ilusão, ilusão. Para gostar de alguém precisamos conhecer primeiro
e Davi é o tipo de pessoa que tem muitas caras. Sabe o que eles fez quando ela descobriu
e tentou nos agredir. Ele deu um soco na cara dela e a empurrou no chão. Ela me
olhou e senti muita vergonha.
A menina se sentou do meu lado e quinze minutos depois o
celular dela vibrou, olhou a tela e disse.
- Meu Deus!
Deu um suave toque na tela, e começou a falar.
-Davi! O que você quer?
- Não basta o que você fez!
-Não vou me encontra com você!
-Ta aqui na frente?
-Não! Não! Eu vou ai na rua!
Ela se levanta com raiva e disse.
- Com licença.
E partiu em direção a saída, decido acompanha-la de
longe.
Chegamos à porta da Santa Casa, vejo o moleque, parece
ter menos de dezoito anos, montado em sua moto de marca alemão. Ele desce da
moto e a chama pelo nome.
-Ruth! Disseram que estava aqui!
- Eu quero distancia!
-Por quê? Sabe que gosto de você!
- E Selene!
-Selene é passado!
-Ela está com os pulsos cortados por nossa causa, não
respeitamos nem a morte do pai.
-Não fui eu que cortei o pulso dela! Nem você! Não somos
culpados!
-Davi volta para casa, não quero mais nada com você.
Ela se vira e vai em direção à porta da Santa Casa. Ele
a segue e a segura pelo pulso de forma bruta e diz.
-Você pensa que sou moleque!
E os dois começaram a discutir, passei por eles, parei em frente à moto.E disse.
Alemã? Esta moto é alemã?
Notei estranheza no olhar dos dois adolescentes. E com
toda minha força a empurrei, a moto tomba, o espelho retrovisor se quebrou. O tanque
parece estar amassado e o pobre menino me olhou com ódio.
-Vai liga para o papai!
-O meu pai é advogado!
Pela primeira vez eu sorrio! Um sorriso de ironia!
-Moleque! Se você for de menor, não poderia estar
dirigindo esta moto e se você for de maior, pode responder pela agressão de Selene
e Ruth. Sou advogado também. Então é melhor você pegar a sua moto e voltar para
casa.
Não pensou duas vezes, com dificuldade levantou a moto e
partiu pela Rua Antonio Afonso.
Ruth se aproximou e com simplicidade agradeceu.
-Obrigada!
-É melhor você ir para casa!
Entrei novamente na Santa Casa, passei pela recepção, emprestei
uma caneta e folhas de papel A4.
Para Selene
Bom dia.
Trocamos olhares ontem à tarde, não vou censurar o que você fez, tinha
motivos, na verdade, te entendo, estive muito próximo de puxar o gatilho. Sabe
o que me impediu? As duas! Cibele e Iris, minha esposa e filha, não sei onde as
duas estão. Mas tenho certeza que não me perdoariam.
Na juventude tive muitos amores que me fizeram mal, o amor precisa ser
correspondido, precisa existir a troca, a decepção dói. Ela é o melhor remédio
para aquele amor pela pessoa errada.
Hoje conheci aquela que você chamava de melhor amiga. Ela sabe que errou
e tem vergonha de seus atos. As vezes é preciso perdoar.
Seu pai fez o que era certo. O invejo. Atravessaria este oceano que se
chama “CANCER” se pudesse salvar minha Iris. Não existe maior dor no mundo,
enterrar um filho, você nem imagina.
Continuo triste, machucado, o sentimento que prevalecia era o ódio,
contra Deus, contra o mundo, este sentimento sumiu de meu espírito. Não sei se
posso te ajudar. A única certeza que tenho que mesmo sem querer você me ajudou.
Um Sábio me disse certe vez:
A dor passa!
Fica uma triste lembrança.
Viva! Selene! Viva!
Precisamos ter uma segunda chance!
Coloco a carta que escrevi no envelope manchado de
sangue, a carta escrita por Selene guardo em meu bolso, vou até o Dr. Elias e
peço para que a entregue na manhã do dia seguinte.
Outro Sábado.
Outro Sábado, nesta semana é a segunda vez que venho a
este cemitério, na entrada encontro com Moises e com um belo sorriso ele me cumprimento.
Caminho pela rua principal onde os túmulos são de granito
e os anjos são dourados, viro à esquerda e vou em direção a capelinha, algo me
chama a atenção, uma senhora e uma adolescente lavando um tumulo as reconheço,
Selene e Ester, tento passar despercebido, Ester me reconhece e me chama.
Era para ser mais um dia triste, prestei homenagem ao
pai de Selene. Ela deixou uma rosa no tumulo de Iris e outra no tumulo de
Cibele.
Conversamos! Conversamos muito. Ela voltou a falar com
Ruth, aquela amizade já não é mais a mesma. Já os comentários sobre Davi foram
sensacionais, a moto era do pai dele, Ele teve um belo e merecido castigo, em
resumo, se deu mal.
Fomos a uma doceria, próximo ao cemitério, comemos vários
pedaços de bolo.
Com abraços nos despedimos. Em Ester notei os mesmos
traços finos de Selene, o frescor da pele e uma beleza que não demonstra seus
trinta e poucos anos.
Ao abraçar Selene, Foi o mesmo que abraçar Iris. O mais
importante foi o sorriso dela no final do abraço!
Olá Pedro,encontrei seu blog no Chá de Lírio,gostei muito dos seus contos!
ResponderExcluirEstou seguindo para continuar lendo seus belos escritos,conheça o meu blog tbm:
www.acaradapoesia.blogspot.com
abraços de poesia
Olá, Pedro Paiva...
ResponderExcluirSeus textos são envolventes, parecem tão reais.
Voltarei para saber da continuação.
Abraços.
Chris Amag
Espetaculares, pra dizer o mínimo. Curti cada linha! Todos tão parecidos com as pessoas com quem vivemos, tão egoístas, desesperadas para aparecer, capazes de qualquer coisa para impressionar quem manda e insensíveis!
ResponderExcluirMuito obrigado!
ExcluirQue beleza de texto. Adorei. Parabéns
ResponderExcluirEstas histórias são reais?
ResponderExcluirimaginarias
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